O exercício da disciplina exige educar para a responsabilidade

“Educar é mais do que preparar alunos para fazer exames, mais do que fazer decorar a tabuada, mais do que saber papaguear ou aplicar fórmulas matemáticas. É ajudar as crianças a entender o mundo, a realizarem-se como pessoas, muito para além do tempo da escolarização.” in Projeto Educativo 'Fazer a Ponte', da Escola da Ponte, Vila das Aves.

Dado o relevo que assume a (In)Disciplina nos dias de hoje, e da maneira algo displicente como geralmente é abordada, importa precisar os seus conceitos. A palavra disciplina tem a mesma etimologia da palavra discípulo que significa "aquele que segue". Tem origem no termo latino para pupilo, que por sua vez significa instruir, educar, treinar, dando ideia de modelagem total de carácter, com o objetivo de tornar o indivíduo apto a não se desviar de uma conduta padrão desejável para o bem comum da sociedade, de acordo com o tipo de sociedade em que se vive e da forma como está organizada, quer contemporânea, quer ao longo dos séculos. Por exemplo, Atenas e Esparta tinham condutas padrão diferentes, tal como a França de Charles de Gaulle e Portugal de Salazar.


A Disciplina é uma ação ou conceito referido a valores. E, neste contexto, desde já afastamos de tal conceito muito do que atualmente parece andar encapotado de “Fuhrer Prinzip”, ou “princípio do chefe”, no sentido de que é infração disciplinar aquilo que o chefe ou superior diz, ou determina que é.

Nesse sentido, é necessário evitar uma conceção diabolizante e omnipresente da disciplina com finalidades, mesmo que inconsciente mas nem por isso deixando de ser reacionária, de se criar uma escola repressiva. Recorde-se, quer o teor da discussão pública e parlamentar à volta das propostas da recente alteração do Estatuto do Aluno, quer os conceitos, regras e metodologias punitivas que esse diploma enferma, onde o carácter educativo e disciplinador não obedece ao primado de princípios pedagógicos.

Sejamos claros: A DISCIPLINA deve ser entendida não como meio necessário ao cumprimento da missão de ensinar, mas sim no sentido da partilha da responsabilidade de aprender, dos fins que justificam a existência da escola numa sociedade moderna e democrática, sociedade essa regida pelos valores da igualdade e da liberdade.
Mas desde quando a Humanidade vive e exerce os seus direitos em democracia?

A sociedade democrática tal como hoje a conhecemos é uma conquista recente do pós II Guerra Mundial. A Declaração Universal dos Direitos Humanos tem pouco mais de meio século (1948). E desde quando as crianças ganharam também direitos de Cidadania? Muito recentemente, como sabem (1959). Esses direitos que as crianças conquistaram, e que foram transmitidos pela anterior geração à atual, finalmente estão ser exercidos. Abrimos um parêntese para lembrar que em muitos jardins de infância e escolas do 1.º ciclo nos deparamos com a afixação de cartazes com a Declaração dos Direitos da Criança – obviamente é uma mensagem transmitida pelos adultos às novas gerações. Veremos como e com que consequências na sociedade e na escola as crianças e jovens exercem os direitos recém adquiridos.

Para a compreensão e avaliação das atuais transformações sociais, todos sabemos que temos de fazer uma análise histórica. Esta é, porém, geralmente esquecida, por facilitismo de uma crítica cómoda, ou saudades da autoridade dos adultos, expressa, muitas vezes, por exemplo pela frase “no nosso tempo...”!

A marcha da Humanidade tem sido longa e difícil na conquista e exercício de direitos, seja de Independência ou de Liberdade, seja de respeito pelo outro. Ao longo dos séculos foi necessário vencer a escravatura, o colonialismo, as desigualdades raciais, a discriminação das mulheres e das crianças. Ainda hoje subsistem regimes de opressão e repressão, sujeitos a fanatismos ideológicos e fundamentalistas. Não estão garantidos a centenas de milhões de pessoas os direitos fundamentais, inclusive o da Educação.

Ao longo dos séculos as crianças têm sido as principais vítimas das guerras, da fome e das doenças. Ainda hoje essa é uma dramática realidade. Os seus direitos pouco evoluíram até recentemente.

As relações de autoridade, que são igualmente um meio de dominação, fundamentavam-se na “tradição”, ou seja, os valores que se transmitiam apareciam como sacralizados pela sua própria antiguidade e repetição de uma geração para outra. “Sempre foi assim...”, ouvíamos incessantemente dizer, e infelizmente ainda por vezes se ouve, como forma de legitimação do domínio de um pelo outro.

Na Antiguidade a autoridade surgiu do “direito do mais forte”, ou seja, nas sociedades primitivas a força transforma-se em direito. E este valor, com nuances adaptadas a cada época, chegou aos nossos dias através da “dominação legal ou jurídica” de quem exerce o poder. Veja-se o que se passa no nosso país, onde cada um dos dois partidos que alternam o poder, quando o exerce, altera as leis à sua conveniência.

Defendia Aristóteles que “alguns sejam feitos para comandar e outros para obedecer”, fórmula que Salazar copiou para ajudar a implementar ideologicamente o seu poder totalitário e cujas sequelas ainda hoje se fazem sentir na sociedade portuguesa.

Na Roma imperial, que inventou o termo de auctoritas para definir autoridade, o poder paternal – pater familias - gozava de autoridade absoluta, incluindo de vida e morte, sobre a esposa, os filhos e os escravos. Podia vender os filhos, dá-los como caução, casá-los à sua vontade ou mesmo matá-los.

Mas esta barbárie não se limitou à Antiguidade. As colónias penais de crianças subsistiram em muitos países, ditos civilizados, até às primeiras décadas do século passado. Crianças, muitas delas com 7 ou 8 anos, por motivos irrisórios eram encarceradas em condições deploráveis, com o objetivo de as “educar” e “corrigir”, sendo-lhes infligidos castigos desumanos que levou muitas delas à morte.

Em Portugal, até ao 25 de Abril, existiram as “Casas de Correcção”, para rapazes e raparigas, onde muitos eram internados a pedido dos próprios pais, para que se transformassem em homens e mulheres. São conhecidas, contudo, histórias de maus-tratos, sevícias e abusos de toda ordem, incluindo sexuais. Cremos que a história destas casas está por fazer, o que se lamenta, pois elas foram percursoras de situações que chegaram aos nossos dias, como o tristemente famoso e já quase esquecido caso Casa Pia.

Ainda há pouco mais de 30 anos, o código penal em Portugal não condenava o marido pelo crime de assassinato da mulher em situação de adultério. E, já este ano, as recentes alterações ao código penal pela primeira vez consideram os castigos corporais sobre as crianças como crime.

De salientar, também, que a criança tem conquistado recentemente direitos específicos que lhe confere proteção especial, alguns dos quais limitando os direitos dos pais e a autoridade paternal. É exemplo o crescente papel das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, que a sociedade não só apoia mas cujos poderes e meios de ação também querem ver reforçados. Esta situação era inimaginável ainda há poucas décadas atrás no nosso País.

Desaparecimento da família tradicional

Os progressos da sociedade democrática que, como vimos, são recentes, e tem como adquirido que os seres humanos são iguais, conduziu a um nivelamento da sociedade, igualizando jovens e velhos, crianças e adultos, apagando diferenças entre pais e filhos, professores e alunos.

O desaparecimento da família tradicional e da escola tradicional está intrinsecamente ligado ao facto de assumirmos novos valores que se desenvolvem na base da igualdade. Isto levou, sem dúvida, à “crise da autoridade” e à “crise da educação” com que nos debatemos. A sua resolução, porém, não passa, nem pode passar, pela restauração da autoridade perdida, mas pela compreensão da História e pela procura de novos caminhos, que não surgem por magia, mas pela reflexão séria sobre o funcionamento democrático das instituições e o exercício do poder no seu interior, que seja compatível com os valores da igualdade e da liberdade e, obviamente, da responsabilidade pessoal e da compreensão de cada um do seu papel na escola e na sociedade.

“Na escola, a participação deve ser a regra, pois é a base da autoridade: só respeitamos quem nos respeita, nos ouve e tem interesse por aquilo que pensamos e sentimos. A autoridade é sustentada na relação de confiança e de respeito mútuo que caracteriza a interacção saudável entre aluno e mestre”, escreveu Daniel Sampaio, num artigo recente. E acrescentou: “Devemos ser exigentes para com os mais novos, para os podermos responsabilizar – aceitamos que podem trabalhar aos dezasseis anos, mas nunca solicitamos a sua opinião sobre as coisas que lhes dizem respeito, como por exemplo o funcionamento da escola que frequentam.”

É utópico? Na Escola da Ponte, onde olham para os Alunos como pessoas, todas diferentes mas com direitos iguais, importantes e fascinantes, existe uma Assembleia de Escola semanal, na qual os intervenientes são os alunos! Esta Assembleia, segundo o Regulamento Interno, “proporciona e garante a participação democrática dos alunos na tomada de decisões que respeitam à organização e funcionamento da escola”. No Projeto Educativo lê-se que “os alunos, através de dispositivos de intervenção direta, serão responsavelmente implicados na gestão corrente das instalações e dos recursos materiais disponíveis, e, nos termos do Regulamento Interno, tomarão decisões com impacto na organização e no desenvolvimento das atividades escolares”.

Para terminar, convém frisar que, sendo os direitos democráticos uma conquista da sociedade, estes não caíram do céu, mas sim da luta persistente de muitas pessoas, arriscamos a dizer, de uma minoria. A falta de participação da maioria das pessoas na conquista de direitos pode explicar a pouca consciência no exercício de participação na vida democrática, de cidadania. Daí que seja importante, fundamental, Educar para a Cidadania, quer na família, quer na escola, ou seja, Educar para a Responsabilidade.

Esta é a proposta de reflexão que a FERSAP aqui vos deixa.

António Amaral
Intervenção no II Fórum Municipal sobre Educação do Montijo, 6 de setembro de 2007

Fontes:
Alain Renaut, O Fim da Autoridade, 2004, edição do Instituto Piaget
Daniel Sampaio, Cidadania, Pública, 22 de Julho de 2007
Escola da Ponte, http://www.eb1-ponte-n1.rcts.pt